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A presunção de inocência pode ser flexibilizada?

A presunção de inocência pode ser flexibilizada?

08/01/2019 Marcelo Aith

O mundo jurídico foi surpreendido no final do ano judiciário, com uma decisão monocrática exarada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

O mundo jurídico foi surpreendido no final do ano judiciário, com uma decisão monocrática exarada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54 que reconhece a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal. Referida decisão foi palco de intensos debates no meio jurídico e acendeu, novamente, a questão da possibilidade ou não de se dar início ao cumprimento de uma sentença penal condenatória antes de esgotadas todas as vias recursais.

Entretanto, a decisão está com seus efeitos suspensos por decisão do Ministro Dias Toffoli.

Não há como enfrentar esta celeuma criada em decorrência da necessária e oportuna alteração legislativa introduzida pela minirreforma do Código de Processo Penal (Lei 12.403/2011), que trouxe importantes e sensíveis novidades ao estatuto processual, sem examinar a nova redação do mencionado artigo 283, o qual dispõe: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

O grande dilema estabelecido no Supremo é saber se é constitucional condicionar o início de cumprimento de pena ao trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória. Ou seja, o cidadão pode ser preso, em decorrência de uma sentença condenatória, fora das hipóteses de prisão em flagrante ou prisões cautelares (temporária e preventiva), antes de esgotados todos os recursos constitucionalmente previstos?

Para responder este questionamento há que se perpassar pelo que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LVII, entende como sendo o momento em que a presunção de inocência ou de não culpabilidade perde espaço para a “certeza” da responsabilidade penal do indivíduo. Está contido no supramencionado preceito constitucional - cláusula pétrea e direito fundamental do ser humano - que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Em uma análise simples do artigo 283 do Código de Processo Penal, na parte concernente ao condicionamento do trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória para o início de cumprimento da pena, em cotejo como o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, não há como deixar de reconhecer a constitucionalidade material da norma processual, dizer o contrário, data maxima venia, é romper com o pacto constitucional estabelecido com o Poder Constituinte Originário. Explico.

O Poder Constituinte Originário é o responsável por estabelecer uma nova ordem jurídica em um país, rompendo com a estabelecida anteriormente. Em 5 de outubro de 1988, portanto, há trinta anos, os brasileiros forma brindados com uma novel constituição, moderna para seu tempo, que trouxe em seu bojo regras e princípios, que não podem ser abolidos sequer por emendas constitucionais, que são os direitos e garantias individuais (artigo 5º da CF).

Dessa forma, sem muito esforço interpretativo, não há como manietar o alcance do presunção de não culpabilidade estabelecido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição e considerar, consequentemente, inconstitucional a condicionante do trânsito em julgado prevista no artigo 283 do Estatuto Processual Penal.

Aqui cabe relembrar a preciosa fala do Ministro Celso de Mello, decano da Corte Suprema brasileira, quando do julgamento da liminar da Ações Declaratórias de Constitucionalidades (ADCs) nº 43 e 44, em que Sua Excelência, com a clareza e ponderação que o acompanharam durante sua longe e irretocável história na magistratura nacional, enfaticamente, defende a incompatibilidade da execução provisória da pena com o direito fundamental do réu de ser presumido inocente conforme expressamente garante a Constituição da República Federal.

Segundo o Ministro, a presunção de inocência é uma conquista histórica dos cidadãos na luta contra a opressão do Estado e tem prevalecido ao longo da história nas sociedades civilizadas como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana.

Porém, a tendência da maioria dos Ministros do STF, inaugurada com o voto do Ministro Roberto Barroso, que inadvertidamente põe de lado sua vida como brilhante constitucionalista e prol de uma vaidade que não pode prosperar em um julgador, é no sentido de modificar o claríssimo texto constitucional, para reconhecer que a presunção de inocência se encerraria com a confirmação da condenação pelo Superior Tribunal de Justiça.

Tomando de empréstimo o questionamento feito por eminente processualista Gustavo Badaró, cumpre aqui indagar aos que defendem a esdrúxula possibilidade de início de cumprimento de pena antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória: “seria da essência da presunção de inocência que tal estado do acusado vigore temporalmente até que a condenação transite em julgado?”

A resposta a esta indagação pode ser extraída de outra lição do Ministro Celso de Mello, senão vejamos: "A nossa Constituição estabelece, de maneira muito nítida, limites que não podem ser transpostos pelo Estado (e por seus agentes) no desempenho da atividade de persecução penal. Na realidade, é a própria lei fundamental que impõe, para efeito de descaracterização da presunção de inocência, o trânsito em julgado da condenação criminal."

Em que pese a clareza insofismável do dispositivo constitucional em relação ao início do cumprimento da pena, o Ministro Sergio Moro, no afã de contentar ao Presidente Jair Bolsonaro e a grande mídia, em seu discurso de posse, afirmou que irá “deixar mais claro na lei, como já decidiu diversas vezes o Plenário do Supremo Tribunal Federal, que, no processo criminal, a regra deve ser a da execução da condenação criminal após o julgamento da segunda instância”.

Além de conter uma imperfeição fática, uma vez que o Plenário não manifestou por “diversas vezes” sobre esse novo posicionamento, o qual, inexplicavelmente, alterou uma jurisprudência consolidada há décadas, o ex-Juiz Federal, propositalmente, cometeu um equívoco quanto à hierarquia das normas. Digo propositalmente, na medida em que não se afigura minimamente razoável afirmar que Sua Excelência desconheça que cláusulas pétreas não podem ser alteradas, sequer por emenda constitucional, quando são restritivas de direitos e garantias fundamentais, quiçá por uma Lei Ordinária.

Destarte, amparado no texto constitucional, a presunção de inocência afasta a possibilidade de execução antecipada da condenação criminal, ou seja, até que sobrevenha condenação penal irrecorrível ninguém poderá ter contra si o início do cumprimento da pena.

Entretanto, a questão somente será solvida, encerrando-se com a insegurança jurídica gerada pelas decisões conflitantes entre as Turmas da Corte Suprema, em 10 de abril de 2019, oportunidade em que o Plenário do Supremo enfrentará, definitivamente, o mérito das Ações Declaratória de Constitucionalidade nºs 43, 44 e 54. Como agirá a Corte que tão a missão de salvaguardar as normas constitucionais?

* Marcelo Aith é especialista em Direito Criminal e Direito Público 



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