A virtude do egoísmo
A virtude do egoísmo
Dizem que não tenho um bom coração. As razões são simples: não acredito em qualquer obrigação de ajudar os pobres, tenho completo desprezo por qualquer espécie de argumento feminista, não me comovo pelos sofrimentos e humilhações sofridos por índios e negros, etc.
Eu sei que enquanto penso no meu jantar de hoje, muitas criancinhas morrem de fome na África, e mesmo assim eu janto tranquilo. O mundo pode ser um lugar feio, mas estou relativamente bem enquanto minha vizinhança estiver bonita. Nunca me vi e nunca me verei na obrigação de contribuir para um mundo melhor, e sempre que me colocam esse fardo goela abaixo sinto a obrigação moral de fazer o meu máximo para contribuir o mínimo possível.
Por outro lado, também não me vejo no direito de pedir nada a ninguém. O máximo que eu faço hoje é pensar no meu jantar, enquanto muitos outros decidem entre comprar um Audi ou uma BMW. Nunca pedi um Audi ou uma BMW para alguém da elite branca, e nem vou pedir. É bem verdade que o prato de comida que eu nego ao miserável pode fazer com que ele morra de fome, e o Audi ou a BMW que eu não vou ganhar de mão beijada só me deixaria com o ego um pouco mais inflado do que ele já é.
De qualquer modo, como já diria o filósofo Sakamoto, se os pobres roubam a culpa é dos ricos, porque o pobre só rouba porque também quer ter acesso aos bens de consumo cobiçados por todos. Assim, se o meu Audi ou BMW é menos útil do que um prato de arroz com feijão, posso dizer sem nenhuma vergonha que o meu desejo de cidadão de classe média é ao menos tão legítimo quanto o do pobre morto de fome. O mais curioso é que muitos daqueles que me torram a paciência dizendo que eu sou um cara malvado são os mesmos que enfrentam a dura decisão entre o Audi e um BMW.
Essas pessoas de algum modo se acham mais benevolentes e humanas do que eu, porque a despeito dos seus belos carros blindados, não conseguem negar um prato de comida a ninguém, e fazem questão de visitar todos os projetos sociais paranauês que tenham potencial de virar uma matéria engajadinha do programa Esquenta. Apesar disso, o que interessa é que essas pobres pessoas ricas têm todo o direito de sujar de lama os seus pezinhos aristocráticos, e eu não tenho nada a ver com isso.
Quem sabe um dia eu não fique um pouco hipócrita também? Quando e se eu um dia eu realmente fizer parte da elite branca, talvez pegue bem para o meu status social ajudar os pobres, e quem sabe até abrir alguma instituição bem cool de projetos sociais nos Jardins ou no Leblon. O problema é que antes disso eu vou precisar trabalhar, e enquanto eu estiver no meio desse processo vai ser um pouco difícil eu pensar em mais alguém fora mim e mais alguns poucos familiares e amigos.
Infelizmente não nasci em uma família rica em que alguém já tivesse percorrido esse percurso por mim, e acho meio nojento usar um suposto amor aos pobres como meio para ficar rico. Por fim, não tenho vocação para mártir, e não estou disposto a me danar ajudando os pobres enquanto eu mesmo não tenho todo o conforto e luxo que eu quero para mim. A minha sorte é que nesse último caso nem mesmo os pés sujos mais ortodoxos parecem estar muito dispostos a abrir mão de suas vidas confortáveis em prol daqueles que sofrem sem ter o mínimo, de modo que eu posso dormir com a certeza de que não sou pior do que ninguém.
No final de tudo, minha mensagem é uma só: prezados pés sujos, por favor, deixem-me em paz para cuidar da minha vida, e de me importar somente com quem eu quiser, como eu quiser e quando eu quiser. Vocês adoram exigir liberdade para fumar e cheirar o que bem quiserem, de parar o trânsito ou até mesmo depredar a propriedade alheia por alguma mensagem da moda, ou para falar em alto e bom som que qualquer batuque escroto é tão bom como o incorrigivelmente europeu Mozart, desde que o batuque saia de alguma parte obscura da favela.
Vocês, em muitos desses casos, dão ao conceito de liberdade uma elasticidade muito mais ampla do que eu mesmo sou capaz de dar, e isso considerando que eu defendo a liberdade acima de qualquer outro valor. Tudo que eu peço é um pouquinho da liberdade que vocês tomam para si para que eu possa cuidar da minha vida, sem que uma parcela obscena daquilo que eu produzo seja tomada para que se pratique caridade aos mais pobres, já considerando o desconto que vai para o bolso das nobres almas que terão que decidir entre um Audi e uma BMW.
Vocês, meus caros rebeldes e revolucionários do Itaim Bibi, deveriam saber que a caridade recebe esse nome porque ela é essencialmente voluntaria, e que quando pegam aquilo que é meu sem que eu queira, nos aproximamos mais do roubo do que de qualquer outro valor fofo que faria nossas mamães chorar de orgulho. Eu já disse que a hipocrisia é livre, mas isso não quer dizer que eu tenha a obrigação de cair nesse papo furado. Saibam que eu faço parte de uma grande maioria, que por enquanto ainda permanece calada, mas que acabará com a sua brincadeira de paladinos da justiça quando resolver abrir a boca.
Saibam, por fim, que não tenho nada contra os pobres, e que não existiria melhor remédio para eles melhorarem de vida do que pessoas como eu cuidando de suas respectivas vidas sem serem incomodadas por imbecis como vocês.
*Caue Bocchi é Advogado e Especialista do Instituto Liberal.