Fatos, opiniões e a sorte da Democracia
Fatos, opiniões e a sorte da Democracia
Comecemos com uma afirmação: “verdade é aquilo que não podemos modificar”.
Por exemplo: se você está lendo estas linhas é porque você é capaz de enxergar e sabe ler. Por conclusão, está vivo. Nada disso pode ser negado. A verdade é assim.
No entanto, já não é possível saber qual interpretação você fará do que pretendo dizer neste texto. E, menos ainda, qual opinião você terá a meu respeito ou em relação ao que eu penso sobre o que exporei. A Democracia é assim.
Na política, a verdade resume-se aos fatos. A mentira é a negação dos fatos. Isso é um absoluto. Fora desse campo, tudo é ponderável, como são as relações humanas.
O que pensamos a respeito de algo; como nos posicionamos, como interpretamos um gesto ou um discurso de uma autoridade, tudo é possível e será mais legítimo quanto menos interessado for.
Ou seja: que eu aplauda o que meu chefe faz, independente do que ele faça, é pouco legítimo e minha opinião perderá credibilidade na medida em que a minha fama de acólito sem personalidade se espalhar.
O campo da política é aquele no qual as pessoas agem por meio de seus discursos e posições assumidas. Esses discursos e opiniões não têm o valor de verdade e, por isso, podem mudar.
Não é à toa que Platão tinha tantas reservas com a Democracia, ele que achava que a verdade era algo perfeito e imutável.
No entanto, no exato momento em que o filósofo da sua alegoria voltou para a caverna para libertar os companheiros amarrados nas "correntes da opinião”, relatando para eles o que tinha visto e como era admirável a verdade, eles receberam essas palavras como mais uma opinião e discordaram dele, virando-lhe as costas.
A pluralidade é a marca da vida política. A única maneira de evitar isso é destruindo a pluralidade, o que os regimes autoritários tentam fazer por meio da censura e repressão aos intelectuais.
Além disso, buscam impor uma única versão dos fatos, cujo objetivo é fazer da versão escolhida por eles o próprio fato, o fato em si.
Ou, no caso extremo, como fizeram os nazistas e os stalinistas, por exemplo, negando os fatos, simplesmente.
Quando há Democracia, um fato é recortado e interpretado de várias maneiras – e é assim que somos e são as coisas.
Não há uma versão mentirosa, exceto a que nega o fato. O que achamos sobre algo do mundo público é o resultado de muitos fatores, desde nossa formação familiar e escolar até nossas conveniências de momento.
Como cidadãos, temos o direito de interpretar e opinar sobre os fatos da maneira que sabemos fazer, podemos fazer e quisermos fazer.
Cabe aos outros aceitar, concordando, ou negar (no todo ou em parte) e argumentar, buscando modificar nossa forma de ver as coisas.
Esse embate é o que marca a vida democrática e a ideia de uma unanimidade - exceto em grupos reduzidos - é pouco provável.
Como já disse, o pior dos mundos, o mais extremo, é quando os fatos são destruídos e a ideia de verdade e de mentira não podem mais ser detectadas: houve Holocausto? Houve ditadura militar no Brasil? Houve repressão sistemática nos regimes comunistas? Sim, sim, sim. São fatos.
Agora, como interpreto e como me posiciono diante desses fatos, e faço isso diante dos outros, no mundo público, é um direito e uma responsabilidade que me cabe.
Mas quando não sei mais se os fatos ocorreram ou não, todo o resto míngua e a própria ideia de espaço público perde o sentido.
A política perde o sentido e eu me alieno do mundo, das questões coletivas. “Vou cuidar da minha vida, e pronto".
É aí que tudo fica mais fácil para os ditadores de plantão.
* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de História no Curso Positivo.
Fonte: Central Press