Portal O Debate
Grupo WhatsApp

Os talibãs brasileiros

Os talibãs brasileiros

07/09/2018 Philipp Lichterbeck (DW)

Apagar o passado é um processo sistemático no Brasil. Há séculos, essa extinção da memória é um instrumento poderoso para perpetuar uma ordem social injusta.

No dia seguinte ao incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro, houve uma manifestação na Quinta da Boa Vista. Cerca de mil jovens compareceram, especialmente estudantes universitários. Reparei numa menina que segurava um cartaz que dizia: "Luzia sobreviveu 13 milênios na natureza, mas não sobreviveu meio século na mão do governo."

"Luzia" foi a primeira brasileira. Ossos humanos mais antigos que os dela nunca foram encontrados no continente americano. Agora, ela virou cinzas.

Com ela, queimaram "vinte milhões de memória de alguma coisa tentando ser um país". Assim a jornalista Eliane Brum, que testemunhou o incêndio, descreveu de forma poética e certeira a tragédia.

Achei especialmente significativa a destruição de milhares de objetos de povos indígenas, alguns deles já extintos. Entre os itens estava uma coleção visual com material fotográfico de centenas de tribos do Brasil, colhido ao longo de séculos. É como se esses povos tivessem sido extintos uma segunda vez.

Apenas 520 mil reais por ano teriam sido necessários para salvar tudo. A soma equivale:

- a 0,04% do custo da reforma do Maracanã;

- ao custo de um juiz federal por ano;

- ao custo da troca de carpete do Senado, três anos atrás;

- ao valor dos brincos de turmalina da coleção de joias do ex-governador do Rio, Sérgio Cabral.

O cálculo foi feito por um internauta que postou a lista no Twitter.

Aliás, a soma também equivale a 2,4% do custo da construção do Museu do Amanhã. Hoje, o Brasil tem um Museu do Amanhã, mas não tem mais passado.

Pode soar paradoxal, mas parece que a história do Brasil não tem valor no próprio país. Não foi uma coincidência o Museu Nacional ter pegado fogo. Foi negligência criminosa. Há 14 anos, o então secretário estadual de Energia, Indústria Naval e Petróleo e hoje secretário de Educação, Wagner Victer, descreveu assim a situação do museu: "Vai pegar fogo."

Nada foi feito. Nos últimos dez anos, incêndios destruíram ao menos oito prédios com tesouros culturais e científicos do país. Parece que o fogo virou normalidade.

Há algo por trás de tudo isso. A ignorância responde a uma lógica: a sistemática destruição do passado brasileiro como instrumento de poder. Este serve para reproduzir e legitimar uma ordem social perversa, classificada pelas Nações Unidas como uma das cinco mais desiguais do mundo.

A destruição do passado foi especialmente eficaz durante a escravidão. Os proprietários tiraram dos escravos seus nomes e suas línguas. Frequentemente, brasileiros brancos têm orgulho de ter raízes alemãs ou italianas, mas qual é o negro que tem sobrenome africano e sabe de onde na África vieram seus antepassados?

Nada lembra essas atrocidades. É possível visitar algumas das belas fazendas históricas de café no estado do Rio de Janeiro. Os visitantes admiram a vida luxuosa dos antigos e atuais donos. Mas sobre a senzala que criou a riqueza prefere-se não falar. É como se não tivesse existido.

Quase metade de todos os escravos que foram forçados a cruzar o Atlântico vieram para o Brasil – cerca de quatro milhões. A maioria deles chegou ao Rio. Mas quase não existe memória sobre um dos maiores crimes da humanidade. Há o minúsculo Memorial dos Pretos Novos, na Gamboa, que luta para sobreviver em meio à falta de recursos.

Há também o Cais do Valongo, o maior marco da escravidão do mundo. Em julho de 2017, o Valongo passou a ser considerado Patrimônio Histórico da Humanidade, para, apenas um ano depois, correr o risco de perder o título por a prefeitura de Marcelo Crivella não cumprir uma série de obrigações.

O mesmo Crivella que, depois do incêndio no Museu Nacional, falou: "Incêndios ocorrem." Crivella é um talibã brasileiro. No Afeganistão, os talibãs detonaram estátuas de Buda milenares. No Rio, eles deixam, simplesmente, que a história se deteriore. Ou acabam diretamente com ela.

O centro do Rio, por exemplo, poderia ter um dos núcleos históricos mais completos e bonitos da América Latina, comparável ao de cidades no México, em Cuba ou na Colômbia. Mas, ao longo das décadas, a máfia formada por setor imobiliário e política construiu torres sem identidade sobre a história do Rio.

Será que alguém se lembra da Aldeia Maracanã? O prédio ao lado do Maracanã foi construído pelo Duque de Saxe em 1862 e doado em 1910 ao Serviço de Proteção aos Índios, comandado pelo Marechal Rondon. A ideia era construir um espaço de preservação da cultura indígena brasileira,e o local abrigou o Museu do Índio, criado por Darcy Ribeiro.

Antes da Copa, o edifício histórico deveria ser derrubado. Dizia-se que precisavam de espaço para o estacionamento de um shopping. São essas as preferências dos talibãs brasileiros: estacionamento e shopping! Somente protestos persistentes conseguiram impedir a demolição,e a cidade prometeu cuidar do prédio. E hoje? Está desmoronando.

Da mesma forma ignorante como lida com a sua história indígena e afro-brasileira, o Brasil lida com a ditadura militar. Onde estão os locais que lembram a ditadura brasileira? Não existem. Em vez disso, um candidato presidencial enlouquecido percorre o país gritando: "Vamos fuzilar a petralhada!". Depois, ninguém poderá dizer que não sabia dos planos dele. É assim que o fascismo começa.

A extinção da história do Brasil não é coincidência. Para um povo sem memória, é possível vender tudo, até mesmo planos para fuzilá-lo e o congelamento por 20 anos dos gastos destinados à Educação e à Saúde. É claro que o incêndio no Museu Nacional não foi planejado, mas não aconteceu por acaso.

* Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.



Nome comum pode ser bom, mas às vezes complica!

O nosso nome, primeira terceirização que fazemos na vida, é uma escolha que pode trazer as consequências mais diversas.

Autor: Antônio Marcos Ferreira


A Cilada do Narcisista

Nelson Rodrigues descrevia em suas crônicas as pessoas enamoradas de si mesmas com o termo: “Ele está em furioso enamoramento de si mesmo”.

Autor: Marco Antonio Spinelli


Brasil, amado pelo povo e dividido pelos governantes

As autoridades vivem bem protegidas, enquanto o restante da população sofre os efeitos da insegurança urbana.

Autor: Samuel Hanan


Custos da saúde aumentam e não existe uma perspectiva que possa diminuir

Recente levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que os brasileiros estão gastando menos com serviços de saúde privada, como consultas e planos de saúde, mas desembolsando mais com medicamentos.

Autor: Mara Machado


O Renascimento

Hoje completa 2 anos que venci uma cirurgia complexa e perigosa que me devolveu a vida quase plena. Este depoimento são lembranças que gostaria que ficasse registrado em agradecimento a Deus, a minha família e a vários amigos que ficaram ao meu lado.

Autor: Eduardo Carvalhaes Nobre


Argentina e Venezuela são alertas para países que ainda são ricos hoje

No meu novo livro How Nations Escape Poverty, mostro como as nações escapam da pobreza, mas também tenho alguns comentários sobre como países que antes eram muito ricos se tornaram pobres.

Autor: Rainer Zitelmann


Marcas de um passado ainda presente

Há quem diga que a infância é esquecida, que nada daquele nosso passado importa. Será mesmo?

Autor: Paula Toyneti Benalia


Quais são os problemas que o perfeccionismo causa?

No mundo complexo e exigente em que vivemos, é fácil se deparar com um padrão implacável de perfeição.

Autor: Thereza Cristina Moraes


De quem é a América?

Meu filho tinha oito anos de idade quando veio me perguntar: “papai, por que os americanos dizem que só eles vivem na América?”.

Autor: Leonardo de Moraes


Como lidar com a dura realidade

Se olharmos para os acontecimentos apresentados nos telejornais veremos imagens de ações terríveis praticadas por pessoas que jamais se poderia imaginar que fossem capazes de decair tanto.

Autor: Benedicto Ismael Camargo Dutra


O aumento da corrupção no país: Brasil, que país é este?

Recentemente, a revista The Economist, talvez a mais importante publicação sobre a economia do mundo, mostrou, um retrato vergonhoso para o Brasil no que diz respeito ao aumento da corrupção no país, avaliação feita pela Transparência Internacional, que mede a corrupção em todos os países do mundo.

Autor: Ives Gandra da Silva Martins


O voto jovem nas eleições de 2024

O voto para menores de 18 anos é opcional no Brasil e um direito de todos os adolescentes com 17 ou 16 anos completos na data da eleição.

Autor: Wilson Pedroso