Liberdade intelectual
Liberdade intelectual
Fala-se e escreve-se muito sobre a liberdade. Mas, essa liberdade tão falada e muito referida não é, propriamente, a que motiva o presente artigo.
A liberdade de pensar, de agir, etc. constitui lugar comum, termo pisado e repisado em livros, cátedras e meios de comunicação. Tal liberdade é o mínimo que pode e deve ter o ser humano. A de ler o que quiser e a de estudar o que desejar – sejam os problemas econômicos e sociais da época ou todas as correntes de pensamento – também situa-se no mesmo plano que a anterior, se bem seja mais complexa e menos entendida por aqueles que se isolam e se bestificam ao limitar sua curiosidade a uma única tábua de valores, a uma única ordem de ideias.
A liberdade intelectual é mais do que tudo isso e está acima das conceituações escritas às pressas nas redações dos jornais e das agências de notícias. Praticamente seu conceito não está ao alcance dos escribas mercenários e muito menos daqueles que preconceituam o mundo e o papel da vida humana. Se os primeiros não podem entender a liberdade intelectual por não a possuírem, os segundos estão limitados à série de conceitos e, dentro deles somente, querem compreender as correntes filosóficas e, mais grave, ajuizarem de seu valor ou de seu desvalor.
Por ai se vê que a condição sine qua non para se criticar qualquer sistema filosófico consiste no estudo das diversas correntes de pensamento na íntegra de suas publicações e não, apenas, através de excertos ou condensações espúrias, que torcem ou mutilam o pensamento original do autor. No mais das vezes esses excertos vêm precedidos ou seguidos de comentários procurando enquadrá-los em determinada ordem conceitual. O primeiro degrau da liberdade intelectual consiste, portanto, na ilimitação de fronteiras para o estudo, na superação de todas as cercas impostas à inteligência humana por quaisquer orientações, por quaisquer pessoas.
Tal degrau é o mínimo que se pode exigir do estudioso e, com mais forte razão, daqueles que têm pretensões de dirigir a mente dos povos, transmitindo-lhes série de “verdades” nunca comprovadas. Apesar dessa ilimitação constituir enorme passo no sentido de alcançar ou obter verdadeira e sólida cultura, ainda não é tudo, ainda não é o suficiente e o necessário. Para que exista verdadeira liberdade intelectual é imprescindível a desvinculação do indivíduo das pretensas “verdades” a que esta enquadrado por força de sua educação desde que veio ao mundo.
Essa desvinculação realiza-se ao desejar o estudioso fazer, momentaneamente e da melhor maneira possível, tabula rasa dos ensinamentos que lhe impingiram, para iniciar o estudo, sem preconceitos ou ideias apriorísticas, das diversas correntes filosóficas que, na realidade, são apenas duas. Sem isso, sem essas condições básicas, o estudioso que nunca reformulou suas concepções ou enfrentou, sem guias ou limitações bestificadoras, todas as construções mentais de séculos e notadamente as mais recentes, poderá ser denominado de intelectual, mas não o será nunca e, muito menos, poderá jactar-se de ser livre.
Aqueles que mais bradam e proclamam sua liberdade são os que mais profundamente estão enclausurados em estreitos limites filosóficos e sempre tiveram receio de, por si sós, aventurar-se ao estudo. Na verdade, são raríssimos os indivíduos que possuem, entre nós, liberdade intelectual. Praticamente, não existe liberdade de pensar, de raciocinar. Imensa barreira de conceitos e dogmas cerca o indivíduo desde seu nascimento e, como o mel do cacau dos romances de Jorge Amado, não o deixa, perseguindo-o em casa, na escola, na rua, no jornal, na rádio, no trabalho, nas mais variadas palestras e na maioria absoluta dos livros que a sociedade muito “democraticamente” coloca a seu alcance.
E esse indivíduo, assim iludido, assim ludibriado por outros que também o são, não possui perspectivas e, para ele, todas as portas do conhecimento humano mais profundo, mais estudado e meditado estão trancadas! E se porventura cai-lhe nas mãos, acidentalmente, livro diferente ou se ele o procura, quando tem coragem intelectual para tanto, o mais provável é não terminar a leitura se a obra traz conceitos contrários aos seus, isto é, a tudo que lhe ensinaram ou lhe enfiaram na cabeça desde a mais tenra idade, quando ainda não possuía capacidade para discernir, examinar, julgar.
Quando era apenas uma criança. Consequentemente não é um intelectual livre. A liberdade que ele pensa possuir é, apenas, um mito, um dos inúmeros e variados mitos em que acredita sincera, ingênua e piamente.
*Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional, entre eles, Brasil: Cinco Séculos de História, inédito.