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Valores dentro e fora do mercado

Valores dentro e fora do mercado

12/10/2014 Joel Pinheiro da Fonseca

Não há jeito melhor de inaugurar minha coluna sobre ética e filosofia aqui no Instituto Liberal do que falando de Michael Sandel.

Ele representa perfeitamente a atitude que me inspira a escrever aqui. Trazer a filosofia de volta ao debate público; resgatar a arte da discussão inteligente, que envolve não apenas especialistas fechados na academia mas todo o "público leitor", as pessoas inteligentes e interessadas. Sandel faz isso. Traz a discussão sobre o tipo de vida e de sociedade que queremos ao alcance de todos, com linguagem acessível e com foco no argumento. Sem ofensas, sem demonização, sem histeria; mas também sem opacidade e sem medo de defender as próprias convicções.

O tempo é escasso; temos que selecionar os interlocutores. Mas uma vez feita a escolha, uma vez citado o autor - seja para concordar ou discordar - o respeito é obrigatório; o que, numa discussão, significa foco no argumento. Nem sempre discutirei as ideias de outros autores; por vezes construirei as minhas. Mas sempre visarei esse espaço do debate público, aberto a todos sem exigir mil leituras antes que alguém possa opinar ou pensar. Como eu ia dizendo, Sandel é meu modelo quanto à atitude filosófica. Não quanto às posições.

E é justamente para criticar a visão central de seu livro "What Money Can't Buy" que escrevo este artigo. Mais especificamente, quero questionar seu receio quanto aos "valores de mercado" que, segundo ele, ameaçam outros valores - mais elevados - de nossa sociedade. Diz Sandel:"Este é um debate que não tivemos na era do triunfalismo de mercado. Por isso, sem percebê-lo, sem jamais decidir fazê-lo, passamos do ter uma economia de mercado para o ser uma sociedade de mercado.

A diferença é esta: a economia de mercado é uma ferramenta - valiosa e eficaz - para organizar a atividade produtiva. Uma sociedade de mercado é um modo de vida em que valores de mercado infiltram todos os aspectos da atividade humana. É um lugar onde as relações sociais são remodeladas à imagem do mercado."

O que são os valores do mercado?

Essa é a primeira pergunta que precisamos responder. Sandel nunca faz questão de definir os valores de mercado. De maneira geral, contudo, ele usa essa expressão para denominar o tipo de motivação que leva as pessoas a agir quando o objeto de sua ação tem um preço em dinheiro. É o que une todos os exemplos que ele dá de intrusões dos valores do mercado em esferas da vida humana, antes intocadas por ele. Exemplos: a escola que paga dois dólares aos alunos por cada livro lido; o banco de sangue que paga pelo sangue colhido; a empresa que paga mendigos para reservarem lugar na fila das sess?es do congresso.

Há dois elementos aí. Um é o uso de um preço (ou prêmio - Sandel não os diferencia) em dinheiro para que alguém faça algo bom. O outro é a expectativa de que a pessoa aja movida pelo autointeresse. Num ponto concordo com Sandel. Colocar um preço num bem altera a maneira que muitas pessoas lidam com ele. Algo que antes mobilizava, digamos, o pensamento altruísta da pessoa (ou seu desejo de se sentir generosa), ou ainda seu medo do estigma social, mobilizará outro departamento mental se vier acompanhado de um preço. Agora ela pensará em termos de ganho para si. Tem quem consiga unir os dois; um aprendizado que requer ir contra milênios de condicionamento. Num famoso exemplo que ele reproduz no livro, a oferta de sangue em diversos bancos de sangue caiu quando os hospitais passaram a oferecer pagamento em dinheiro ao invés de depender apenas de doações. Um economista olha para isso e já pensa: o preço não está alto o suficiente. Provavelmente há algum preço no qual a oferta de sangue chegue ao mesmo nível que ela tinha quando só havia doações. Mas, se na situação anterior, a da doação, o bem estava disponível de graça, e se a oferta supria toda a demanda, essa nova situação (sangue custando caro) não parece ser um grande progresso. Parece, antes, um retrocesso. Um serviço que estava disponível a todos gratuitamente agora custa caro. Perdemos um foro da generosidade. A lógica do autointeresse cumpre diversos papeis, e a grande vantagem do mercado é fazer com que ela sirva às demandas da sociedade. Mesmo o sujeito egoísta vê-se obrigado a servir aos desejos alheios para ter os seus próprios desejos satisfeitos. Mas essa lógica não é, e nem deve ser, a única coisa a guiar nossas vidas. Há ações que fazemos pelos outros, ou por uma causa, ou pela sociedade, e que derivam seu valor precisamente disso. Os valores de mercado (o autointeresse) não devem ser os únicos valores. Mas será que eles são tão perigosos assim?
Relação entre autointeresse e outros valores
A imagem básica pintada pelo livro é a de que se os valores de mercado entram num novo contexto, eles tendem a expulsar, ou corromper, os valores que antes vigoravam naquele espaço. Ele dá vários exemplos em que o autointeresse movido pelo preço domina uma ação que era antes praticada por algum motivo nobre. Mas e se a relação entre os valores for mais complexa do que a mera expulsão de um pelo outro? Ou ainda: e se o motivo anterior, que o autointeresse suplantou, não fosse tão nobre assim?

Um exemplo: uma escola no Texas oferece às crianças 2 dólares por livro lido. Para Sandel, isso é preocupante: o incentivo monetário substitui o gosto pela literatura. Ler livros para ganhar dinheiro não é a mesma coisa que ler pelo amor à leitura ou para se tornar uma pessoa melhor. Acho que ninguém pensaria diferente. Mas considere que um valor inferior nem sempre expulsa um superior. Em muitos casos ele pode servir de escada. Embora num limite extremo essas motivações possam de fato impedir a criança de descobrir o prazer da leitura, em graus moderados elas são, na verdade, degraus que levam ao valor maior (e mais difícil). Inicialmente, é preciso um incentivo externo.

Conforme a criança desempenhe a tarefa, ela vai descobrindo seus bens internos, até ser capaz de desejá-la por si mesmos. E aí o sentido do dinheiro se inverte: ela estará disposta a pagar por um bom livro. No mundo do trabalho adulto vale a mesma coisa. A pessoa muitas vezes começa a trabalhar só pelo dinheiro, mas depois descobre alguma função de que realmente gosta. A remuneração, nesse caso, não é supérflua; se o sujeito não for rico, ele exigirá pagamento mesmo que lhe seja oferecido seu trabalho dos sonhos.

O autointeresse aí reforça os bens internos da profissão. É bom ser bom em algo, servir aos outros com o próprio conhecimento e esforço e ser recompensado por isso. A ética do mercado é aquela que reconhece a harmonia entre diferentes valores, entre autointeresse, busca de ideais e serviço ao próximo, ainda que, em diversos casos, exista um conflito. Quem está numa posição melhor para aprender a ser simpático e levar isso para a vida: aquele que se vê obrigado, pelas demandas do trabalho, a tratar bem seus clientes, ou aquele cuja funç?o permite que ele seja mal-educado sem consequência alguma?

O garçom ou o funcionário de alguma burocracia estatal? Se a relação dos valores for muitas vezes harmônica e complementar, então temos a ganhar permitindo que os valores de mercado penetrem mais na vida social. A mentalidade antiga - ajo por mim OU pelo outro - dá lugar a uma nova - ajo por mim E pelo outro. Venda de sangue, órgãos e outros serviços hoje gratuitos poderiam ser rotineiramente pagos sem por isso perder seu aspecto de benevolência.

Há outra crítica, óbvia, à maneira que Sandel trata o exemplo da escola: na ausência do prêmio em dinheiro, o aluno leria por amor ao saber? A resposta é óbvia: na imensa maioria dos casos, não. Ele lê por medo de levar bronca, ou medo de ser reprovado (e esse recurso ao medo ou à obediência se justifica justamente pelo argumento gradualista acima; primeiro lê-se por dever, para aos poucos descobrir o prazer). O prêmio em dinheiro não substitui o amor ao saber, e sim o medo da bronca.

Se deixadas à espontaneidade de seu desejo, pouquíssimas crianças leriam livros. Por que só o prêmio em dinheiro é acusado de "corromper" os valores mais elevados, e não o medo da bomba no fim do semestre, que vigorava antes dos valores de mercado darem as caras? Outro caso sobre o qual Sandel se delonga é o dos presentes. Sem dúvida: um presente pensado, criativo, com significado, vale mais para quem recebe e para quem dá do que apenas seu preço em dinheiro.

Mas e todos os presentes dados apenas por obrigação? As roupas sem originalidade, os DVDs escolhidos ao acaso. Talvez a maioria dos presentes de aniversário e Natal pudesse ser trocada por dinheiro com ganho para ambas as partes. Menos tempo perdido de um lado, mais satisfação do outro. Isso chega ao paroxismo nos presentes de casamento, em que são os próprios noivos que fazem a lista do que querem ganhar. O ritual maçante de ir à loja (ou ao site da loja) e a tortura dos noivos de ter que trocar o que ganharam poderiam ser eliminados se cada convidado depositasse um cheque.

Nesse caso, o símbolo do presente é uma realidade vazia, e ainda assim custosa. Os valores de mercado trariam um benefício moral, uma maior honestidade, além do ganho de tempo. Há muitos outros valores que motivam nossas ações, nem todos tão nobres: vaidade, desejo de se sobressair socialmente, adesão a imperativos morais equivocados, medo de punição, sentimento de obrigação. Por que o autointeresse monetário deve ser considerado inferior a esses?

Se a pessoa doa sangue só para se promover socialmente, isso é melhor do que doar para ganhar um trocado? Eu respeito mais a honestidade da segunda do que a vaidade da primeira. Isso não quer dizer que não haja bons valores fora do autointeresse. É claro que há. Fazer uma boa ação por amor ao próximo, ou dedicar-se a uma causa, à sociedade, ou ainda almejar àquilo que o dinheiro não compra, são coisas boas. A maioria considera esses motivos muito superiores ao autointeresse, à busca do lucro. E sem dúvida, frequentemente eles o são. Mesmo aí, contudo, há um limite.

Quando o altruísmo vai longe demais

Por falta de um termo melhor, chamarei o desejo de servir ao próximo, de deixar o próprio interesse de lado para o bem alheio, de altruísmo. Concordo que o altruísmo é muitas vezes bom. Mas há altruísmos maus; e isso de duas maneiras. A primeira é quando o serviço ao outro se presta a fins maus. Membros sinceros de uma seita que com seu trabalho gratuito servem aos interesses de um chefe criminoso, por exemplo. O altruísmo deles é mau, pois facilita e encoberta a vida de crimes do líder.

Se eles tivessem um pouco mais de autointeresse, se buscassem o próprio bem, não se deixariam usar dessa maneira. Outro exemplo são patriotas que ajudam seu Estado a travar guerras injustas. Eles colocam o interesse de outro, o Estado, ou a ideia de nação, acima de si próprios; não deveriam. Há casos piores. O segundo jeito pelo qual o altruísmo pode ser mau é o caso em que, ainda que ele sirva a uma finalidade boa, ele é excessivo. Ele invade uma esfera da vida do sujeito da qual ele não deveria abrir mão.

Esse é o caso mais doloroso, pois é o de pessoas bem-intencionadas, ou boazinhas, demais, além da conta. É o caso da pessoa que passa a vida inteira cuidando de um parente doente, e por isso não constrói uma vida própria. Ou o do soldado, ou do funcionário (estatal ou privado), que dedica toda sua vida a servir sua instituição, incapaz de retribuir a gentileza. O soldado inválido que fica abandonado, o aposentado ou demitido que percebe, tarde demais, que entregou seus melhores anos a algo ou alguém e não os terá de volta. Vidas sacrificadas e tristes.

Gostamos de elogiar essas pessoas, cultuá-las como modelos, santos, heróis. Mas o que sentimos de verdade não é admiração, e sim pena. Pena por tudo que poderiam ter buscado para si e não buscaram; pela vida pouco vivida. Evidentemente, o que histórias como essas mostram de maneira radical é vivido de formas mais sutis diariamente, toda vez que o mero dever de se sacrificar vem antes de nossas reais aspirações.

Por que é relevante considerar casos como esses? Porque eles ilustram o movimento oposto ao apontado por Sandel: nesses casos, foi o altruísmo que corrompeu o autointeresse. Quem trabalha de graça não é melhor do que quem cobra seu devido valor. Muitas vezes, é pior.

O mercado é maior que o autointeresse

Autointeresse, altruísmo e outros valores devem encontrar um equilíbrio. Os valores de mercado são parte integrante e importante de uma vida bem vivida. E o mercado é justamente o ambiente que permite as experimentações para que cada um encontre esse caminho. Sandel não chega a propor o Estado como meio de barrar o avanço dos valores de mercado, mas essa é a solução implícita que tem sido tirada do livro. Que todas as escolas paguem por livro lido? Parece excessivo. Mas que essa experiência possa existir, paralela a muitas outras, é uma riqueza para nosso conhecimento.

Talvez funcione, talvez não; e talvez funcione para algumas crianças, não todas. Talvez algumas sociedades ganhem com valores de mercado em certas áreas, e outras percam; talvez as atitudes mudem e o que era bom no passado deixe de ser bom. O que a um parece inaceitável ao outro pode parecer normal, e não há razão pela qual a visão de qualquer um deles deva imperar sobre os demais. É justamente a "sociedade de mercado" que permite e incentiva essa vivência enriquecedora.

Seu trunfo é colocar o autointeresse na rota do bem comum, sem por isso impedir outros valores. Ele não é só um mecanismo, mas um contexto; o processo dos atos e das trocas voluntárias, em que algumas pessoas podem sim dar um valor finito ao que outras consideram sagrado. Ser contra o que alguns fazem dentro dele não precisa incluir a crítica à própria liberdade de criar que ele garante. Afinal, participar ou não de um mercado, de uma rede de trocas, é uma escolha que cada um faz.

Não é porque todo mundo come carne e paga por ela que um vegetariano terá que pensar e agir como a maioria. O limite moral do mercado é dado por cada um de nós, e não está claro por que deveria ser diferente. A discussão pública dos valores não precisa culminar na imposição de uma resposta universal. Para Sandel, o mercado é um mecanismo de alocação de recursos, mas os valores de mercado ameaçam destruir outros valores mais importantes. Só que a relação é mais complexa.

Os valores interagem entre si de diversas maneiras, muitas vezes se reforçando mutuamente, outras entrando em conflito e corroendo as alternativas, e não existe um sentido unívoco nesse processo (aliás, será mesmo que nossa sociedade é mais mercantilizada do que foram as eras passadas? Tema do meu próximo artigo).

O que se busca é um equilíbrio sutil no qual todos os valores, mesmo os de mercado, precisam encontrar seu espaço para concretizar uma vida humana o mais feliz possível. Não há uma direção única para a preocupação; às vezes precisaremos de mais valores de mercado, às vezes de menos. E na maioria das vezes será positivo que soluções paralelas convivam, e isso também é uma virtude do mercado.

*Joel Pinheiro da Fonseca



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