Portal O Debate
Grupo WhatsApp

A Lei de Abuso de Autoridade como instrumento de abuso

A Lei de Abuso de Autoridade como instrumento de abuso

04/06/2020 Marcelo Aith e Rodrigo Fuziger

O genial escritor francês Paul Valéry certa feita afirmou que: “O poder sem abuso perde o encanto”.

Nesse sentido, é inequívoco que na esfera público os poderes investidos a indivíduos não raro geram uma trajetória perniciosa que parte da posição de autoridade para uma concretude em atos autoritários.

Tal movimento deturpa o poder estatal, que tem por premissa o seu exercício numa perspectiva técnica, em desencanto – pois sem o deslumbramento típico dos excessos – nunca ensimesmado e jamais direcionado a finalidades ilegítimas a seus estritos propósitos.

Em virtude disso, todo o ordenamento jurídico está permeado por normas que visam a assegurar a contenção do comportamento dos agentes públicos, sendo certo que vasta parcela desse conteúdo está insculpido na Constituição Federal brasileira, profundamente inspirada na limitação do arbítrio estatal como uma necessidade de primeira ordem ao Estado democrático de Direito.

Para tanto e inclusive, a noção de freios e contrapesos entre os poderes constitucionais é fundamental na incumbência de balancear forças e limitar abusos.

Ocorre que o equilíbrio nos arranjos entre os três poderes tem uma conformação frágil, notadamente ainda mais em virtude de crises institucionais que marcam o Brasil nos últimos tempos. Há alguns dias, tal contenda ganhou um sensível marco.

Trata-se da decisão recente do ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, que determinou o levantamento do sigilo da fatídica reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril de 2020.

Tal decisão continua reverberando na imprensa, meios políticos e jurídicos. Isto porque muitos correligionários do Presidente Jair Bolsonaro apontaram que ela teria ofendido o artigo 28 da Lei 13.869/2019 (o próprio Presidente publicou um tweet com a transcrição do dispositivo alguns dias após a decisão).

Tal artigo dispõe, in verbis: “Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado. Pena: detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.”

Após alguns dias e muitas opiniões depois, é possível sintetizar – depois desse breve, contudo necessário período de maturação do debate – uma posição desapaixonada sobre o tema, nos estritos limites da dogmática penal e dos preceitos constitucionais atinentes.

Nesse sentido, a decisão do ministro Celso de Mello não perfectibiliza o delito em tela. Há pelo menos três razões indubitáveis (que seriam suficientes, per si, mas quando somadas demonstram que a tentativa de imputar o delito à conduta em questão é uma inequívoca teratologia) para tanto:

O tipo penal em comento exige que a divulgação seja exibida “expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado”.

É despiciendo alongar-se no seguinte argumento: tratava-se de uma reunião entre o Presidente, seu Vice e seus Ministros no desempenho de suas funções.

Não há qualquer exposição da intimidade, da vida privada ou aviltamento da honra ou imagem, eis que o conteúdo divulgou falas proferidas justamente por tais indivíduos.

Não estão presentes os elementos subjetivo do injusto, previstos no §1º do artigo 1º, da Lei de Abuso de Autoridade.

O referido disposto estabelece “que constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.

Destarte, finalidade específica de para a configuração dos crimes de abuso de autoridade, são: 1) prejudicar outrem; 2) beneficiar a si mesmo; 3) beneficiar a terceiro; 4) mero capricho; 5) satisfação pessoal.

Para configuração dos delitos da Lei de abuso de autoridade exige-se um dos elementos específicos do injusto, sob pena de atipicidade do delito.

O ministro Celso de Mello em sua decisão pontuou que: “ao assistir ao vídeo em questão e ao ler a transcrição integral do que se passou em referida assembleia ministerial, que não foi classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada (Lei nº 12.527/2011, arts. 23 e 24), constatei que, nela, parece haver faltado a alguns de seus protagonistas aquela essencial e imprescindível virtude definida pelos Romanos como ‘gravitas’, valor fundamental de que decorriam, na sociedade romana, segundo o ‘mos majorum’, a ‘dignitas’ e a ‘auctoritas’.

Essa é uma das razões pelas quais um dos investigados, o Senhor Sérgio Fernando Moro, pretende, a partir do exame do contexto global em que se desenvolveu semelhante reunião ministerial, identificar e revelar, na busca da verdade em torno dos fatos, os reais motivos subjacentes à conduta presidencial.

Estender-se o manto do sigilo aos eventos que só a liberação total do vídeo seria capaz de revelar implicaria transgredir o direito de defesa de referido investigado, que deve ser amplo (CF, art. 5º, LV), além de sonegar aos eminentes Senhores Ministros do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, “b”), aos ilustres Senhores Deputados Federais (CF, art. 51, I) e aos protagonistas deste procedimento penal o conhecimento pleno de dados relevantes constantes da gravação em referência, vulnerando-se, frontalmente, desse modo, o dogma constitucional da transparência, instituído para conferir visibilidade plena aos atos e práticas estatais.”

Portanto, a fundamentação construída pelo Ministro afasta peremptoriamente as finalidades estampadas no artigo 1º, §1º, da Lei 13.869/2019.

3) Por outro lado, não se pode olvidar que o Art. 1º, §2º estabelece uma excludente consistente na impossibilidade de se atribuir “crime de hermenêutica”, que assim dispõe:

“A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Trata-se de mais um argumento que afasta em absoluto qualquer vislumbre de incriminação.

Assim, a tentativa de subsunção pela simples análise da descrição típica do Art. 28 da Lei 13.869 é uma flagrante atecnia, eis que deixa de lado pressupostos e ressalvas previstas no próprio corpo do diploma.

É certo que a Lei 13.869 trouxa uma alvissareira perspectiva de contenção dos frequentes e intoleráveis abusos de agentes públicos.

No entanto, a efetividade de tal diploma em tal propósito está imprescindivelmente ligada a sua correta aplicação: intransigente e enérgica quanto às condutas típicas de agentes públicos que abusam de poder e deturpam a razão de ser de suas funções (qual seja, servir à sociedade); com esmero técnico, de modo a não ser instrumentalizada de forma oportunista de modo a constranger agentes públicos que atuam com correção.

Do contrário, o potencial benéfico da lei dará lugar a um cacofônico e pernicioso fenômeno da Lei de Abuso de Autoridade como um instrumento de abuso.

Esse parece ter sido o sentido da referência por alguns à lei no episódio da decisão do ministro Celso de Mello: o desiderato de intimidação e enfraquecimento do dever de atuação de um proeminente representante de um dos poderes constitucionais, visando a um desequilíbrio de forças, o que, conforme a História é pródiga em demonstrar, é terreno fértil do arbítrio e autoritarismo.

* Marcelo Aith é advogado especialista em Direito Público e Direito Penal e professor da Escola Paulista de Direito.

* Rodrigo Fuziger é advogado PhD e Mestre em Direito Penal pela USP.

Fonte: Ex-Libris Comunicação Integrada



O embate Twitter Files Brasil: que legado queremos deixar?

Elon Musk está usando sua plataforma X (ex-Twitter) para um duelo digital com o presidente do STF, Alexandre de Moraes.

Autor: Patrícia Peck


Justiça e inclusão: as leis para pessoas com TEA

Por muito tempo, os comportamentos típicos de crianças que tinham Transtorno do Espectro Autista (TEA) foram tratados como “frescura”, “pirraça” ou “falta de surra”.

Autor: Matheus Bessa e Priscila Perdigão


Você conhece a origem dos seus direitos?

Advogado e professor Marco Túlio Elias Alves resgata a história do Direito no Brasil e no mundo em livro que democratiza os saberes jurídicos.

Autor: Divulgação


Os planos de saúde e os obstáculos ao bem-estar dos pacientes

No contexto do direito à saúde no Brasil, os planos de saúde privados são regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que estabelece normas e diretrizes para garantir a cobertura assistencial aos consumidores.

Autor: Natália Soriani


R$ 200 mil não apaga a dor, mas paga a conta

Um caso de erro médico do interior de São Paulo chamou atenção de todo Brasil por conta de dois fatores.

Autor: Thayan Fernando Ferreira


Precisamos mesmo de tantas leis?

O Direito surgiu como uma forma de organizar melhor as sociedades, uma vez que já havia algumas tradições reproduzidas a partir de exemplos ou de determinações orais que alguns grupos, especialmente os familiares, seguiam.

Autor: Marco Túlio Elias Alves


Proibição do chatbot na campanha eleitoral afeta políticos com menos recursos

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atualizou normas relacionadas ao uso da inteligência artificial nas campanhas para as eleições municipais de 2024. A alteração é vista como pequena e mal discutida por especialistas da área.

Autor: Divulgação


Digitalização da saúde e os desafios na relação plano e consumidor

A digitalização da saúde, que compreende o uso de recursos tecnológicos e de Tecnologia da Informação (TI) para fins médicos, é um fenômeno que a cada ano se consolida e expande em todo o país.

Autor: Natália Soriani


Os equívocos do caso Robinho

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no uso de competência constitucional e regimental, analisou e, por maioria de votos, homologou o pedido de execução da sentença penal condenatória proferida pela Justiça Italiana contra o ex-jogador Robinho.

Autor: Marcelo Aith


A nova lei de licitações: o que deve mudar daqui para frente?

O sucesso dessa legislação dependerá do compromisso de todas as partes envolvidas em trabalhar juntas.

Autor: Matheus Teodoro


Exclusão de dependentes maiores de 25 anos de planos de saúde

Os magistrados têm reconhecido a existência de uma expectativa de direito por parte dos consumidores.

Autor: José Santana Junior


TikTok e a multa milionária por captura ilegal de dados biométricos no Brasil

Por utilizar métodos que ferem a Lei Geral de Proteção de Dados e o Marco Civil da Internet, o TikTok, rede social famosa por vídeos de curta duração, foi multado em R$ 23 milhões pela Justiça.

Autor: Renato Falchet Guaracho