Um Bravo Santana no Meio do Dilúvio
Um Bravo Santana no Meio do Dilúvio
Crônica quase amena de mais um temporal dezembrino numa avenida que se transformou em rio de lama.
O CÉU (seria mesmo céu?) estava escuro, cada vez mais denso na negritude de núvens ameaçadoras. Voltei ao meu Santana, bravo, valente e velho companheiro de tantas guerras, virei a chave, e procurei fugir da tempestade que se avizinhava.
NÃO adiantou a pressa. No meio do caminho o aguaceiro me pegou em cheio, e não apenas a mim, mas a todos os demais que, ao meu lado, ou em direções opostas, tentavam escapar. Ao entrar na Amazonas, lá pelos lados da Gameleira, já não se conseguia enxergar nada. Água escura e vento forte, as gotas grossas, mais que gotas, jatos vindos de cima e dos lados, batiam nos vidros, faziam o carro balançar. A sinalização precária nas pistas, sobre o asfalto corroido e esburacado, praticamente não se fazia perceber pelo motorista, pelos motoristas que como eu enfrentavam o temporal dezembrino. Liguei o sistema de alarme luminoso, acendi todos os faróis possíveis, fechei os vidros, e fui em frente, devagar, lentamente, no meio da avenida transformada em um rio de águas violentas e enlameadas, para evitar a enxurrada que descia por ela, carregando tudo o que encontrava solto na pista, nos passeios, formando fontes verticais de água suja junto dos postes, das árvores, dos carros estacionados nas calçadas.
FORAM, assim, do mesmo jeito, na mesma agonia sofrida, minutos intermináveis. Afinal, chegando à avenida do Contorno, livre dos alagados pela sua posição altaneira, o fim do drama. A chuva já amainara. E o portão da minha garagem, e meu refúgio, já podia ser visto, à esquerda, gloriosamente azul e intacto.
NO CAMINHO, no longo e perigoso caminho percorrido, me lembrei de São Paulo. Quantas pessoas morreram lá nas chuvas de terça-feira? Quantas terão morrido, ou perdido suas casas, com o nosso quase dilúvio de quarta? Por que os governos municipais permitem construções em áreas de risco? Por que não realizam obras que evitem os alagamentos e as enxurradas, como a que enfrentei na Amazonas? Por que gastam tantos recursos, nossos recursos, pois nós é que bancamos suas contas, em obras suntuárias, adiáveis, desnecessárias?
FOI um temporal dezembrino. Outros virão.Os jornais darão manchetes. Os governantes anunciarão medidas emergenciais. raramente executadas depois do perigo esquecido. E senhores dirigindo valentes, bravos e velhos Santanas, enfrentarão os riscos, alguns escaparão, e tudo acabará em uma crônica quase amena.
* Fábio P. Doyle, jornalista e membro da Academia Mineira de Letras