A sombra e o fato
A sombra e o fato
Há mais de dois mil anos, o filósofo Platão criou a alegoria da caverna para descrever como a maior parte das pessoas vive em meio ao nevoeiro das opiniões, prisioneiras de seus sentidos e do mundo limitado e distorcido que deriva deles, sempre que nos afiançamos apenas neles.
Toda a crença mítica nasce daí: nossa dificuldade em explicar o que nossos sentidos não são capazes de apreender - como o invisível, por exemplo - encontra guarida nas narrativas de seres poderosos e misteriosos, a guiar nossos destinos, escolhendo os que serão castigados e os que serão protegidos; e na existência de uma natureza finalista, que submete o vir-a-ser dos indivíduos pela “qualidade” que eles possuem.
Muitos escravizamo-nos a essas narrativas, pois que elas se tornam também explicações sociais e políticas, fundamentando diferenças e hierarquias.
A Ciência é um movimento de rompimento dessa cadeia que nos condena a viver em meio às sombras do “dizem que”.
Este é, porém, um esforço dificílimo, pois precisa vencer duas forças opostas: a de buscar esclarecimento em meio às sensações enganadoras e a de sobreviver aos que se opõem a qualquer possibilidade de sair da caverna, rompendo as regras de funcionamento que os destaca como reis dos cães ou como cães dos reis.
Há, portanto, uma barreira que é a de vencer às dificuldades mesmas de um corpo sensível em busca de apreender fatos objetivamente e outra barreira que é a dos obscurantistas que amam as sombras onde quase nada se distingue e só aí eles podem ter sua chance.
Porém, basta uma luzinha que seja e seus rostos parvos se revelam. Por isso, deve-se condenar a luz, lançando as sombras sobre ela, confundindo as pessoas, cujos olhos ardem e as cabeças doem com a exposição ao Conhecimento.
Por fim, basta associar essa vertigem, essa dor (de aprender) a uma doença, a um mal que precisa ser extirpado ou calado. E pronto: os líderes míticos se travestem de salvadores. Até da Pátria.
A história do Conhecimento nos últimos dois mil anos foi a busca incessante pelo que havia fora da caverna de nosso corpo, essa busca por esses outros que não somos nós e como eles se relacionam conosco e como podemos interagir e também como devemos nos proteger da presença deles.
Para isso, precisávamos olhar para fora sem a mediação - ou com o mínimo de mediação - de nossa própria subjetividade, nossos temores e as crenças que foram sendo infundidas por um longo e largo caminho de ignorância e que, para se legitimar, passou a se chamar (também) de “tradição”.
O Fato é algo que existe e precisamos olhar para ele na sua inteireza, com o máximo de clareza, entendendo sua dimensão e os efeitos de sua interação com o nosso corpo.
Para isso, precisamos, igualmente, evitar que nossas sensações e crenças interfiram no processo de aproximação e observação desse “outro”. Isso demanda uma preparação árdua.
Sócrates comparava o Conhecimento a um parto, ou seja, um processo longo e doloroso. Platão, na porta de sua escola, a Academia, mandou pendurar uma placa na qual estava escrito: “aqui só entram os geômetras”.
A ideia de Ciência, lentamente, foi sendo forjada em torno do esforço de suspensão da nossa subjetividade, condição para que pudéssemos aprender com os outros seres vivos e não apenas submetê-los à nossa régua de valores e crenças.
Essa tem sido uma trajetória com muitas vitórias. No entanto, a humanidade como um todo caminhou de maneira profundamente desigual.
E os que ficaram na caverna, atados voluntariamente ou inconscientemente às correntes da doxa, ameaçam agora efetivar uma revolta tão curiosa quanto amedrontadora: a de fechar a entrada da caverna e impedir o acesso aos Fatos. Na escuridão que tudo confunde, somente nela, é que a ignorância pode ser soberana.
O que estamos vivendo, não nos iludamos, é uma disputa pelo poder. Os vírus, a vacina, e até mesmo aquele remédio pra vermes, são todos parte desse combate de trevas e luz.
* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
Fonte: Central Press